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11.10.04

Pela janelinha do banheiro

Ela gostava de Avril Lavigne e do Hugh Grant. Achava o máximo ter no vocabulário expressões singulares como “tipo assim, ninguém merece. Tá ligado?”. E agora, parada em frente ao espelho, lia as instruções do lado de fora do kit "Faça Você Mesmo" que tinha à mão.
O kit, feito especialmente para quem quisesse colocar um piercing sem precisar ir a uma farmácia, estava aberto. A jóia, apoiada sobre a pia, refletia a luz do dia naquela primeira hora da manhã.
Lia com cuidado as instruções: "Passe um algodão com álcool no local escolhido. Em seguida, demarque o ponto exato onde...".
Muita coisa corria por sua cabeça, desde o fascínio pela jóia que sua amiga lhe mostrara pendendo de seu umbigo até a longa discussão com seus pais - depois da qual, mesmo apresentando todos os prós e nenhum contra, não obtivera resposta diferente de um “Não!”.
Tantas dúvidas a consumiam naquele momento que, sob pena de não ter tempo de refletir sobre todos os pontos antes de tomar uma atitude da qual viesse a se arrepender depois, não se preocupava em remoer ponderações semelhantes por mais de cinco segundos.
Enquanto lia as instruções, procurava razões e explicações para essa nova vontade. Sem dúvida, grande parcela da culpa cabia a sua amiga e à jóia dela. Ela sabia, no entanto, existir um outro motivo.
Com 16 anos, estudante pré-universitária, dotada da inquietação natural àqueles que se prendem numa frase entre a infância e a inconstância da vida adulta, não podia contentar-se com uma razão tão inconsistente. A influência da amiga poderia sim ser uma das razões, mas nunca a base de sua decisão. Ela reconhecia, então, uma incontrolável vontade de se diferenciar das outras garotas de sua idade - todas tão iguais. Não fosse esse acesso eugênico por natureza, nunca teria comprado aquele kit às escondidas.
Era uma jovem. Tomar decisões tão importantes ainda lhe era totalmente desconfortável. E, apesar de relutar em aceitar esse fato, ali inerte diante do grande espelho do banheiro, ela tinha medo. Não tanto da dor, mas do talvez inevitável arrependimento.
"... primeira semana, limpe a jóia a cada dia para afastar o perigo de uma infecção." - terminou de ler as instruções.
Já se considerava apta a perfurar seu próprio corpo.
Levantou a blusa até fazê-la sair por sobre a cabeça.
Analisou seu tronco nu, de alvura angelical, que estava prestes a ser violado por um ímpeto juvenil.
Observou com certa languidez a cavidade esférica em seu abdômen. Tinha um belo umbigo. Muito bem formado. E, dali a algum tempo, teria um umbigo adornado, com um brinco pendendo dele.
Fechou os olhos e, como se pedisse socorro, perguntou aos azulejos se não haveria outra forma de ser diferente. Por que para conquistar seu espaço deveria submeter-se àquela provação?
Quando tornou a abri-los, viu um sorriso despontando em seu reflexo no espelho.
Ainda sorrindo, vestiu a blusa jogada no chão, juntou todos os componentes do kit, fechou a caixa na qual até algum tempo atrás lia as instruções e, sem pensar ou dar margem a arrependimentos, jogou tudo pela janelinha do banheiro.
Tinha certeza de que, com essa atitude, estava conquistando seu espaço: dali em diante, ela seria uma das poucas – talvez a única – garota de sua idade sem um piercing.
E isso a tornaria diferente de todas as outras.
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