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31.10.04

Teoria

Um olhar ao nosso redor para comprovar a veracidade dessa teoria: 98% da população mundial é formada por pessoas feias.

E a beleza dos outros 2% está nos olhos de quem vê.

Sociofóbico

Vamos lá! Força! É só uma questão de vontade... Nem precisa fazer muito esforço. É só abrir a porta. Daí colocar um pé na frente do outro até chegar lá fora. Abrir o portão. Fechá-lo. E pronto! Você estará na rua. E ali se misturará com todos os outros. São todos inofensivos. Não lhe farão mal. Vamos! Pare de olhar por essa janela. Você está perdendo um tempo precioso. O relógio corre! Não pense que ele está congelando sua existência e que a vida parou só por causa desse seu medo bobo. O que há de errado com você? Parece cego para essa verdade, embora tenha que aceitá-la mais cedo ou mais tarde: as paredes dessa casa não têm mais cores do que uma simples olhadela de sol vista lá do lado de fora. Você tem que enfrentar a rua! Fobia social? Não me venha com essas desculpas. De que você tem medo? Só os fracos sentem medo quando não há nada a temer. Por essa janela só vejo pessoas interessadas em suas próprias vidas, preocupadas em resolver seus problemas. Ninguém lhe dá atenção! Ninguém se importa se você tem medo ou não! Por que haveriam de notar sua saída? Ah, então é isso que teme? Qual o sentido de sair se, estando lá ou aqui, para eles continua tudo no mesmo, você me pergunta... Oras, sua vida você mesmo faz. Pare de se preocupar tanto com os outros. Olhe com mais carinho para você mesmo. Veja no que está se transformando!
Estou farto disso tudo. Se você quer ficar aqui isolado, tudo bem. Mas não me peça para lhe fazer companhia. Tenho assuntos mais importantes a tratar. Que tipo de assuntos? Sei lá... Talvez eu vá colar um adesivo na lateral do meu carro. Qualquer coisa é melhor do que ficar aqui. Só me faça um favor: quando a vontade for mais forte do que o medo e aí então você perceber que já é tarde demais para sair porque seus pés criaram raízes nesse terreno mais conhecido do que fértil, chore sem fazer barulho, porque eu também não estarei ouvindo.

23.10.04

Enquanto a chuva cai

... vem crescendo, e crescendo, e crescendo... e fica cada vez mais forte... e tenta controlá-lo... e aos poucos vai conseguindo... entra em sua cabeça... trazendo idéias estúpidas que se enrabicham com seu gênio... e você acaba aceitando porque não vê outra solução... e entra nessa viagem... e lá no fundo a verdadeira razão desaparece... e aquele rosto tão lindo vai sendo retalhado... e você sucumbe, rendendo-se ao chamado clandestino... e aí sim que tudo começa a destruir sua mente... pela boca, pelos olhos, pelos ouvidos e nariz vai entrando... e você se sente cada vez mais cheio daquele treco... e começa a se sentir enjoado... mas esse enjôo também têm um quê de "quero mais"... e você não consegue parar... e tenta falar... mas aquilo cresceu e está mais forte do que você... e aperta sua garganta, sufocando seu coração... você tenta as janelas e a porta, mas está tudo trancado... ninguém parece ouvi-lo do lado de fora... está sozinho.. e ali trava uma batalha... sangrenta... violenta... triste como tudo o que há de pior em sua existência... apesar de não querer, é obrigado a pensar em passado, presente e nunca mais... e o nunca que jamais lhe havia aparecido tão claramente agora se posta ao seu lado... e faz barulho... e também o infecta... e faz sua cabeça ainda mais pesada... obriga-o a baixar os olhos... a fechar a boca... e aceitar a realidade... enquanto lá fora a chuva cai.

Sociedade dos Poetas Mortos

"I went to the woods because I wished to live deliberately, to front only the essential facts of life, and see if I could not learn what it had to teach, and not, when I came to die, discover that I had not lived." *
(Henry David Thoreau)


* "Fui à floresta porque queria viver intensamente, conhecer apenas a essência da vida, e ver se eu poderia aprender o que ela tinha a ensinar, para não descobrir, no dia de minha morte, que eu não tinha vivido."






LXVI - Outra vez Neruda...


" No te quiero sino porque te quiero
y de quererte a no quererte llego
y de esperarte cuando no te espero
pasa mi corazón del frío al fuego.

Te quiero sólo porque a ti te quiero,
te odio sin fin, y odiándote te ruego,
y la medida de mi amor viajero
es no verte y amarte como un ciego.

Talvez consumirá la luz de enero,
su rayo cruel, mi corazón entero,
robándome la llave del sosiego.

En esta historia sólo yo me muero
y moriré de amor porque te quiero,
porque te quiero, amor, a sangre y fuego. "

(Pablo Neruda)


* * *


" Não te quero senão porque te quero
e por querer-te a não querer-te chego
e por esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Te quero só porque a ti te quero,
te odeio sem fim, e odiando-te te rogo,
e a medida de meu amor viageiro
é não ver-te e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de janeiro,
seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história só eu morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo. "


de "Cem Sonetos de Amor":

"Não te amo como se fosses rosa de sal, ou topázio,
ou flecha de cravos que propagam o fogo.
Eu te amo como certas coisas devem ser amadas,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Eu te amo como a planta que jamais desabrocha
mas carrega consigo a luz das flores escondidas;
E graças ao teu amor uma certa fragrância marcante,
que da terra surgiu, vive obscurecida em meu corpo.

Eu te amo sem saber como, nem quando, nem de onde.
Eu te amo simplesmente, sem complexidades nem orgulho;
Assim te amo porque não conheço outra forma

senão essa, onde eu não existo, e tu não existes,
Tão perto que tua mão em meu peito é minha,
Tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho. "


(Pablo Neruda)

Ou, nas palavras de Robin Williams, que magistralmente recita Neruda no filme "Patch Adams - O Amor é Contagioso": " I do not love you as if you were salt-rose, or topaz / or the arrow of carnations the fire shoots off. / I love you as certain dark things are to be loved, / in secret, between the shadow and the soul. / (…) / I love you without knowing how, or when, or from where. / I love you straightforwardly, / without complexities or pride; / so I love you because I know no other way / that this / (…) / so close that your hand on my chest is my hand, / so close that your eyes close as I fall asleep."



22.10.04

Quando éramos 2

Houve um tempo em que nós éramos 2. Para o que quer que fosse, éramos eu e ele. Para festar ou quando precisávamos de alguém para desabafar, nós nos encontrávamos, só os 2. Ele ouvia meus problemas, eu consolava as tristezas dele. Conversávamos muitas horas a fio, às vezes sem nem ter sobre o que falar. Nos conhecíamos. Sabia o que ele gostava de fazer; ele evitava o que me deixava triste. Nossas individualidades não precisavam estar expostas, pois éramos capazes de apontar o local onde elas se escondiam. Eu era um, ele, outro; juntos, éramos 2.
Mas aí vieram outros. E fomos nos tornando 3, 4, 5... No final, viramos um grupo grande, um aglomerado de 8 ou 9 pessoas que era bom para as festas. E só. Toda a relação que se firmava no cerne de nosso bando não diferenciava em muito de um contrato, um mero acordo de participação. Nada parecia mais intenso nem mais verdadeiro do que aqueles momentos do passado quando nossos olhos se cruzavam em silêncio e tudo o que ele queria me dizer eu lia em seus olhos. Nossas pessoalidades se perderam. Deixamos de nos falar, mesmo estando no mesmo grupo. Nesse tempo, parecia que 3 minutos conversando sobre nós mesmos era tempo demais. Raramente ficávamos mais de 1 minuto sem que um terceiro ou um quarto nos interpelasse. Aos poucos fomos deixando de nos conhecer, apesar de sempre estarmos juntos. Perdidos naquele grupo, compartilhamos risadas vazias que duravam apenas um átimo antes que a tristeza tomasse conta de nós tão logo passássemos a nos sentir sozinhos mesmo estando entre tantos outros. Eu deixei de ser um; e assim também o fizeram todos os demais. Abdicamos de nossas individualidades em favor do interesse comum. Aquela cumplicidade tão gostosa de outras épocas foi substituída pela desconfortável vergonha de olharmos um nos olhos do outro. Nos tornamos pedaços daquilo que éramos. Viramos partes. Descartáveis e sem importância. Se um não estivesse ali, que falta fazia? Havia todos os outros...
Assim, de um jeito que só me fez sentir falta do passado em que éramos só eu e ele, deixamos de ser 2... e passamos a ser nenhum.

21.10.04

Dicas:

MÚSICA

* "(I´ve Had) The Time of My Life" - Bill Medley e Jennifer Warnes
Música tema do filme "Dirty Dancing - Ritmo quente"


FILME

* "Dirty Dancing - Ritmo Quente": "Uma garota em férias com a família se apaixona pelo instrutor de dança do hotel onde estão hospedados. Porém, o ritmo quente da dança faz com que seus pais censurem o romance. Com Patrick Swayze e Jennifer Grey. Vencedor do Oscar de Melhor Canção Original".

É um dos filmes que se enquadra no universo romântico-musical da produção americana da década de 80 (do qual também fazem parte as produções "Footlose - Ritmo Louco" e "Flashdance"). Apesar do roteiro simplório, típico aos romances água-com-açucar da época, e do sub-título esdrúxulo que só mesmo uma tradução sem compromissos seria capaz de criar, o filme é "quente" em sua essência.
Sem falar na trilha sonora que, a começar por sua música-tema, é sensacional.


WEB

* Para quem gosta de aliar boa leitura e viagem pela internet, o site No Mínimo é um prato cheio. Com uma equipe de colunistas de primeira, o site envolve os navegantes com sua linguagem direta, fluente e "com algo a dizer".
Tratando de assuntos tão variados quanto política e televisão, passando por economia, esporte, literatura, cinema e música (entre outros) os colunistas apresentam diariamente ao público novas reflexões sobre os fatos que vão construindo a realidade brasileira e mundial.


MAIS UMA DE FILME

* "A Vila" (site oficial) : "Os habitantes de uma vila isolada convivem com a ameaça de misteriosas criaturas, que vivem no bosque que cerca o local. Dirigido por M. Night Shyamalan e com Joaquin Phoenix, William Hurt, Adrien Brody e Sigourney Weaver no elenco".

Conforme as palavras do crítico Ricardo Calil, "com apenas 34 anos, (Shyamalan) é um dos poucos cineastas americanos que tem algo importante a dizer e que merece ser acompanhado filme após filme".
Ele é também responsável por outros filmes nos quais explora seu interesse "por tudo aquilo que não pode ser visto nem explicado" (os fantasmas do excepcional "Sexto Sentido", os super-heróis em "Corpo Fechado" ou os extraterrestres de "Sinais").

Shyamalan em "A Vila", demonstra toda sua qualidade como diretor, roteirista, editor de som e de imagem. Ou seja, demonstra ser ele um artigo em falta nos corredores da Hollywood de hoje, um Cineasta com "C" maiúsculo.

A dualidade entre o "ver para crer" e o "crer para ver", personagens que se dividem entre razão e fé, a desconstrução do gênero de suspense que dá asas ao filme (com a explicação da razão do medo das personagens e como ele é alimentado) e momentos de grande inventividade e beleza (desde uma declaração de amor piegas que ainda assim consegue contagiar a todos até a originalidade com que as cenas de violência são mostradas - a exemplo da cena da facada de um personagem em outro) legam a esta "criatura" a principal característica de seu criador: a capacidade inata de "surpreender o público sem tapeá-lo".

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19.10.04

Pensamento do dia

" A maior qualidade de uma pessoa
é também o seu maior defeito "
(Provérbio chinês)

14.10.04

Fragmento de uma história jamais escrita

(...)

Você pensa que a possui?
Lívido engano...
Você nunca a teve.

Você acredita nas carícias dela, e por isso pensa que a possui.
São carícias frias.
Falsidades de um coração onde o amor só existe porque a boa-vontade da razão o criou.

Você ouve as palavras dela, as mesma que ela jura serem verdadeiras, e por isso acredita em suas carícias?
Pois onde se esconde a verdade nos olhos dela?
A verdade não se esconde...
Ela simplesmente inexiste.

Assim como o mundo que você criou, a vida que você construiu para fugir da realidade.
Sim, eu sei...
Você não acredita em fantasias.
E por isso diz ouvir a voz dela declamando-lhe versos apaixonados.
Essa é a razão que o faz acreditar nela?
Talvez eu tenha algo a lhe dizer, então...

Olhe-se no espelho.
O que você vê?
Jura que é seu o rosto que se reflete, não é mesmo?
Afirma de forma solene que a pele oleosa sobre a qual a luz faz festa é, de fato, sua?
Triste engano...

Esse não é você.
É apenas um outro alguém que entrou em seu corpo, tomou posse de suas atitudes e agora diz, sem pudor nem culpa, serem dele as palavras que aqui escrevo.
Confuso?
Também estou...

Mas que sou eu para estar confuso?
Como posso dar-me a esse desfrute se sou nada além de um reflexo na porra de um espelho de banheiro?

Eu sou você, a melhor parte de você, sua criação.
Faço parte do mundo por você imaginado, o mundo no qual você a possui...
Fora desse mundo, nem poeira sou, minha matéria se esvai e se dilui com o vento.
Porque eu não existo.

Você sabe que eu não existo e ainda assim me dá ouvidos?
Pois lhe digo uma verdade: você nunca a possuirá!
Porque ela é só uma ilusão, uma imagem criada pelo reflexo que você vê refletido no espelho do banheiro.


11.10.04

Pela janelinha do banheiro

Ela gostava de Avril Lavigne e do Hugh Grant. Achava o máximo ter no vocabulário expressões singulares como “tipo assim, ninguém merece. Tá ligado?”. E agora, parada em frente ao espelho, lia as instruções do lado de fora do kit "Faça Você Mesmo" que tinha à mão.
O kit, feito especialmente para quem quisesse colocar um piercing sem precisar ir a uma farmácia, estava aberto. A jóia, apoiada sobre a pia, refletia a luz do dia naquela primeira hora da manhã.
Lia com cuidado as instruções: "Passe um algodão com álcool no local escolhido. Em seguida, demarque o ponto exato onde...".
Muita coisa corria por sua cabeça, desde o fascínio pela jóia que sua amiga lhe mostrara pendendo de seu umbigo até a longa discussão com seus pais - depois da qual, mesmo apresentando todos os prós e nenhum contra, não obtivera resposta diferente de um “Não!”.
Tantas dúvidas a consumiam naquele momento que, sob pena de não ter tempo de refletir sobre todos os pontos antes de tomar uma atitude da qual viesse a se arrepender depois, não se preocupava em remoer ponderações semelhantes por mais de cinco segundos.
Enquanto lia as instruções, procurava razões e explicações para essa nova vontade. Sem dúvida, grande parcela da culpa cabia a sua amiga e à jóia dela. Ela sabia, no entanto, existir um outro motivo.
Com 16 anos, estudante pré-universitária, dotada da inquietação natural àqueles que se prendem numa frase entre a infância e a inconstância da vida adulta, não podia contentar-se com uma razão tão inconsistente. A influência da amiga poderia sim ser uma das razões, mas nunca a base de sua decisão. Ela reconhecia, então, uma incontrolável vontade de se diferenciar das outras garotas de sua idade - todas tão iguais. Não fosse esse acesso eugênico por natureza, nunca teria comprado aquele kit às escondidas.
Era uma jovem. Tomar decisões tão importantes ainda lhe era totalmente desconfortável. E, apesar de relutar em aceitar esse fato, ali inerte diante do grande espelho do banheiro, ela tinha medo. Não tanto da dor, mas do talvez inevitável arrependimento.
"... primeira semana, limpe a jóia a cada dia para afastar o perigo de uma infecção." - terminou de ler as instruções.
Já se considerava apta a perfurar seu próprio corpo.
Levantou a blusa até fazê-la sair por sobre a cabeça.
Analisou seu tronco nu, de alvura angelical, que estava prestes a ser violado por um ímpeto juvenil.
Observou com certa languidez a cavidade esférica em seu abdômen. Tinha um belo umbigo. Muito bem formado. E, dali a algum tempo, teria um umbigo adornado, com um brinco pendendo dele.
Fechou os olhos e, como se pedisse socorro, perguntou aos azulejos se não haveria outra forma de ser diferente. Por que para conquistar seu espaço deveria submeter-se àquela provação?
Quando tornou a abri-los, viu um sorriso despontando em seu reflexo no espelho.
Ainda sorrindo, vestiu a blusa jogada no chão, juntou todos os componentes do kit, fechou a caixa na qual até algum tempo atrás lia as instruções e, sem pensar ou dar margem a arrependimentos, jogou tudo pela janelinha do banheiro.
Tinha certeza de que, com essa atitude, estava conquistando seu espaço: dali em diante, ela seria uma das poucas – talvez a única – garota de sua idade sem um piercing.
E isso a tornaria diferente de todas as outras.

10.10.04

Dica de leitura:

* A entrevista que a filósofa Marilena Chaui concedeu à revista Cult deste mês (edição 85/Outubro 2004)...

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Artigo de Luxo

Infelizmente, no Brasil, cultura ainda é artigo de luxo (se não aos poucos afortunados agraciados com a possibilidade de saciar sua sede de conhecimento, pelo menos à grande massa – que, dia após dia, sujeita-se a condições desumanas para conseguir colocar comida na mesa de seus filhos). Por isso, nesse país tropical, fica fácil chamar o cidadão comum de burro só porque ele não conhece Jean Paul Sartre ou porque não sabe declamar um par de versos de Mário Quintana.

Essa “exclusividade cultural”, no entanto, não pode ser utilizada para condenar os tantos brasileiros que, ao invés de comprarem uma revista de qualidade (e que custa o equivalente às refeições de toda uma semana), compram uma revista de fofocas, com notícias fúteis e inúteis, mas que está ao alcance de seu bolso. Porque, numa nação em que se combatem males tão grandes quanto a fome, a miséria e o desemprego, é um absurdo que o direito de acesso ao conhecimento encontre limitações no poder aquisitivo da população.

Mesmo assim – e embora seja um absurdo jamais compreensível e aceitável – a cultura como sendo privilégio de poucos é perfeitamente explicável, já que o que há não é nada além de uma grotesca inversão de valores: conhecer o pensamento de Sartre e os versos de Quintana, muito antes de ser um ponto de segregação entre cultos e incultos, deveria ser uma opção oferecida a todos.

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5.10.04

O homem que queria mudar o mundo

Ele queria mudar o mundo.
E resolveu começar pelas coisas mais simples.
Alguém ligou naquele dia em que ele decidiu tomar uma atitude, e ele foi atender.
- Macaca Xita!
Ele não disse alô.
A voz do outro lado da linha percebeu, e também não disse alô.
Nada disse, a bem da verdade.
Ele, então, tornou:
- Macaca Xita!
Do outro lado, só o som de uma respiração pausada, que a breves intervalos dava a impressão de ter parado. Admirada ou surpresa; não se pode estar mais certo sobre seu estado. Perplexa, sem dúvida! E essa perplexidade a fazia segurar a risada, muito embora rir parecesse ser a única resposta cabível.
Transtornado - oras! Ele estava tentando mudar o mundo e pareciam não reconhecer a nobreza de seus esforços! -, insistiu uma terceira vez:
- Macaca Xita!
Dessa vez, berrou.
E a respiração do outro lado da linha, sem explicação alguma, foi substituída por um pulsar contínuo.
(tu tu tu tu tu tu)
Sim! Ele queria mudar o mundo.
Mas havia se esquecido de perguntar se o mundo queria mesmo ser mudado.

"Eu Etiqueta" - C. Drummond de Andrade (parte 3)

Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.

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"Eu Etiqueta" - C. Drummond de Andrade (parte 2)

Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.

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"Eu Etiqueta" - C. Drummond de Andrade (parte 1)

Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.

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